quinta-feira, 6 de agosto de 2015
a criança-ferida e o mi-mi-mi
Amiga N. vou responder seu email em duas partes. A primeira, refletindo com você as questões mais pessoais; segundo, contando uma experiência pessoal onde um episódio evidenciou a ação reativa de uma senhora que, apesar dos seus oitenta e tal anos de idade, fez um "mi mi mi" daqueles.
Respondendo seu email pessoal sobre o "mi mi mi":
Amiga N. você está conseguindo sair do seu "mi mi mi". Parabéns! Dê parabéns também ao seu psicoterapeuta existencial. Quero parabenizá-la pela conquista do espaço psíquico positivo, conscientizando-se de que o "mi mi mi" não mais lhe cabe, nesta altura do campeonato, e também pela forte e visível mudança de atitude mental que está empreendendo,de modo consciente, corrigindo, sempre no ato, todas as expressões "mi-mi-mescas" que, eventualmente, queiram ainda surgir por hábito.
Mas atenção: não se iluda! Temos, todos, uma criança interna que vem à tona todos os dias e todas as horas.
Enquanto fuga psicológica, neste caso, ninguém pode afirmar com certeza que está totalmente imunizado.
Há, contra nós, um tempo passado em que permanecemos neste estado psicológico de fuga infantil, na busca dos ganhos secundários que ele oferece, diante da complexidade dos passos sociais em que o mundo demanda-nos atitudes maduras,na correspondência identitária que estabelecemos como sendo a nossa marca personal de ser no mundo.Pelo que você me informou, sua identidade, por muito tempo esteve ligada à estética do tipo "bebê de capa de revista".
Agora, você está fazendo psicoterapia e, tenho certeza, ele também vai ajudá-la, ao longo do tempo, a sair deste indevido lugar "fragil" e " desabrigado" que, na verdade, guarda uma "fera-ferida sob pele de ovelha desmamada". Você sabe dessa fera ferida, que ela existe dentro de você e que "bota a cabeça de fora", toda vez em que é contrariada em seus interesses mais preciosos.
Todos nós temos esses aspectos infantis a serem ultrapassados. Cuide, no entanto, para que isso não a impressione tanto. Você é espírita atuante e trabalha numa Instituição da zona sul do Rio de Janeiro que com as luzes da Codificação Kardequiana cuida e ajuda as pessoas a se desenvolverem no âmbito do bem.
Seja feliz e não se esqueça de cantar parabéns no momento do seu aniversário; deixe a criança sadia sair livre, leve e solta quando convier. Mas, nos momentos sérios, dialogue com ela e convença-a que não deve mais demandar infantilidades nos momentos impróprios.
Por fim, deixe a mulher-adulta falar mais alto e vá em frente, como guerreira, pois a sua luta particular contra o preconceito judaico também é pela sua sobrevivência emocional, numa parte do mundo em que ainda temos selvageria e ignorância predominando. Além disso, pelo que você me informou, você está vivendo junto de um homem instável e irrequieto, que você gosta muito. O certo é que ninguém poderá lutar por você no seu lugar neste mundo de expiações e provas... Amiga N., aproprie-se dele e lute com as armas do bem... e continue a ser você mesma, analisando-se a cada dia, como diz Santo Agostinho (questão 919 de O Livro dos Espíritos), sem medo de deixar a sua criança vir quando cabe e a sua face adulta, quando você precisar comandar as suas atitudes mais sérias.
Pelo o que você escreveu, você é bem capaz de fazer tudo isto por você mesma. Então, chore menos e pense mais; sofra menos e realize mais; menos propaganda enganosa de si mesma e mais ação concreta no bem que convoca você a realizar sua vocação de mulher de bem.
Vejamos o Episódio do "mi mi mi":
Eu estava na fila de caixa de banco (sempre muito estafante) e, numa manhã do dia 5, a coisa parece ser bem pior. Na condição de idoso, em um dia desses, eu estava sentado naquele banquinho reservado aos clientes do banco que são chamados de terceira idade.
Não havia a chamada eletrônica e, nós mesmos, então, fizemos a marcação de quem era o último da fila etc.
Eu estava lendo um livro, quando surgiu uma senhora bem cuidada, com seus oitenta anos, do tipo mandona, corpo inteiro, face dura que já chegou falando bem alto, dirigindo-se a nós outros, os idosos:
-Por que isto está tão cheio assim?
Todos se entreolharam e ninguém respondeu. Ela estava com as mãos na cintura, olhando fixamente para todos nós, como se fosse a dona do pedaço, embora tivesse acabado de chegar. E ficou ali, olhando para todos nós, de pé, atrapalhando a outra fila de caixa.
Uma guarda armada, dirigiu-se a ela e disse com educação:
-Senhora, por favor, sente-se no seu lugar. Quando chegar sua vez a senhora vai ao caixa... esta outra fila precisa ficar arrumada conforme a marcação no piso... a senhora está atrapalhando.
A velhota virou-se para a guarda, colocou o dedo na frente do seu rosto e gritou enfurecida:
-Alguém pediu a sua opinião? A conversa está na sala... não chegou na cozinha... sua negra intrometida!
A guarda segurou seu revólver da cintura e com os olhos cheios de água respondeu baixo e educadamente, embora visivelmente abalada:
-Não estou destratando a senhora, portanto a senhora não tem o direito de me destratar! Favor sentar nesta cadeira antes que eu tome uma decisão que a senhora não vai gostar! - estas últimas palavras foram pronunciadas bem alto, com firmeza, entre os dentes.
Para a surpresa geral, a velhota acatou a ordem firme da guarda e sentou-se.
Burburinho geral. Impropérios... confusão de frases.
De repente, a velhota começou a choramingar com os olhos apertados. Como se fosse uma criancinha que perdeu o pirulito, choramingou muito alto frases de autoflagelação em um "mi-mi-mi" impressionante. Ela murmurava e chorava muito alto:
-É sempre assim! Todo lugar que eu vou ninguém me entende... estão sempre me perseguindo. O que será meu deus que eu fiz para merecer isso?
-Isso o que? - perguntou outra senhora que até então estava calada.
Ela olhou para a inquiridora com um olhar que parecia de uma pedinte:
-Sou uma desgraçada... ninguém me ama... ninguém me quer.... foi assim minha vida toda. Estou só!
-Para quem está assim tão só, a senhora deveria ser mais humilde! - rebateu um senhor que estava sentado ao meu lado.
-Peraí!!! - defendeu um outro senhor do meu lado esquerdo. Ela deve estar doente... olhem para ela! Deviam ter um pouco mais de compaixão.
-Cruz credo! Compaixão! - contraditou outra senhora. Viu como ela ofendeu a guarda? Isto é coisa que se fale para uma negra?
-Tem gente que não fala, mas pensa!... rebateu outra. Acho que somos racistas e escondemos isto... emendou outro. O racismo é algo vergonhoso... o Brasil não jeito etc . As frases foram ditas por vários velhos e debatidas numa discussão acalorada.
Eu estava observando tudo atentamente e vi que, apesar do alvoroço, a velhota, causadora de tudo, havia mudado a sua expressão, quando começou a discussão sobre o racismo. Pensei comigo mesmo, procurando entender o que ocorreu:
-Primeiro ela chegou com um olhar enfezado, do tipo que quer brigar por qualquer coisa, agrediu gratuitamente e, depois que levou um " sacode" da guarda, encolheu-se em lamúrias, banhada com lágrimas de "mi-mi-mi" infantil que contagiou todo o agrupamento de velhos e velhas, a tal ponto que já estavam discutindo em voz alta se deveria existir no Brasil a pena de morte para pessoas racistas.
Enquanto tudo isto acontecia, a velhota trazia um leve sorriso de satisfação nos lábios, um olhar maroto de um menina travessa que conseguiu chamar a si todas as atenções e discussões.
Chegou minha vez de ir ao caixa e levantei-me. Ao passar pela velhota, abaixei-me discretamente, toquei no seu ombro e disse-lhe baixinho ao ouvido:
-Aí hein! Conseguiu o que queria,né?!
Caminhei para o setor fechado dos caixas, mas, antes, arrisquei olhar para a velhota e lá estava ela, longe da discussão, cravando seus olhos de ódio na minha direção.
Depois que saí do setor dos caixas, passei por fora daquele lugar onde os velhos estavam discutindo e ainda pude ver, pela ultima vez, aquela velhota provocadora. Ela continuava me seguindo com seu olhar duro, como uma águia, mandando-me talvez raios deletérios resultantes do mesmo enfezamento que vimos ser desvelado quando ela chegou ao banco.
Pensei para mim mesmo:
-Quem sabe como se constituiu a história pessoal desta senhora? Foi sempre assim?
Como psicólogo clínico não consegui deixar de pensar nos seus pais, irmãos, professores e orientadores religiosos. Quantos foram testemunhas desta gênese doentia?
O que fizeram quando ela começou com as suas pequenas hostilidades gratuitas e sem propósito, suas agressões lesivas ao outro, a ausência de piedade, preconceito racial, o "mi-mi-mi" infantilíssimo quando enquadrada pelas autoridades existentes no mundo? E aquele aparente prazer mórbido que percebi de influenciar os incautos, mantendo-os no seu centro de interesse e atenção? E a posterior indiferença ao que se discutia, mantendo, talvez, o seu pensamento em outras paisagens mentais? E seu olhar duro e raivoso direcionado para mim quando denunciei, baixinho, em seu ouvido, o cerne de sua intenção?
Há muitas " crianças-feridas" adultas no mundo, fazendo "mi-mi-mi" mesclado de mau-humor, pirraça ou "calundu"!
O que fazer com esses adultos-crianças-feridas?
O que fazer, hoje, para que, amanhã, nós não sejamos um deles?
Julio Cesar de Sá Roriz
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